Publicado em 24/04/2019 às 07:41, Atualizado em 24/04/2019 às 11:45

Leonor viveu 15 dias de “amor” até passar o resto do casamento apanhando

Ela e os filhos eram agredidos e o marido até a obrigou "parir" sob uma árvore, sem ajuda

Campo Grande News,
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Leonor segurando sua filha no colo ao lado do marido e de mais duas amigas (Foto: Kisie Ainoã)

Ah, o amor... Muitas vezes pode ser um inferno. A sina de dona Leonor Spatt Pedrosa foi casar com Orlando Pedrosa, aos 20 anos idade. A felicidade durou 15 dias. Depois, a esposa virou saco de pancadas. Eram socos, facas voando, ameaças constantes, fome e no meio da tormenta o parto de um de seus 12 filhos, sob uma árvore qualquer, sem ajuda. A paixão pelo marido acabou logo no primeiro ano de casada, mas já era tarde demais para mudar de ideia. Tanto tempo depois, a senhora de 86 anos não entende como ainda hoje, as mulheres enfrentam o mesmo tipo de violência.

“Meus pais não gostavam dele, mas mesmo assim me casei. Ficamos 15 dias na casa da minha mãe em Colorado, no Paraná, até ir para minha sogra, e lá foi a minha primeira surra. Estava colhendo feijão quando o Orlando disse algo e bateu forte na minha cabeça. Escondi-me nos fundos da casa e chorei, nesse momento eu falei: Por que fui casar com ele? Mal sai de casa e já estou apanhando de homem”, conta Leonor.

A partir da primeira agressão, as surras tornaram-se constantes. Da casa da sogra, Leonor e Orlando foram morar em uma fazenda no Paraná, já distantes dos pais da esposa. “Na fazenda, ele trabalhava na roça e o lado mulherengo dele falou mais alto. Quando o conheci, aparentava ser uma pessoa diferente, porém, depois de casado as coisas mudaram”, disse. “Cada dia ele aparecia com uma mulher diferente”, completa.

Já no primeiro ano de casada, Leonor ficou grávida da filha Nadir. “Era muito jovem, e ele tinha ciúmes. Tive que ganhar os meus filhos debaixo de árvores, que nem animal. Ele me largava lá e ia atrás das outras. Não tinha remédio, nada, tanto que três filhos morreram”, lembra.

Tempo depois, um homem apareceu e chamou Orlando para trabalhar em outra fazenda, mas desta vez em Mato Grosso. “Disse que iriam ficar ricos trabalhando com café, mas quando entramos lá era só mato. Ele fez uma barraca e uma cama usando folhas, para dormirmos. Em todo lugar eu apanhava, de calcinha, me batia com chicote de couro”, recorda.

Leonor logo engravidou novamente. “Cada ano tinha um filho, porque na época não existia forma de prevenção, e eu menina, também não sabia o que fazer. E sempre me batia, não importava o motivo. Quando estava barriguda, tacava faca para me matar. Uns homens que iam jantar na nossa casa, ele tinha ciúmes e eu e as crianças apanhávamos por isso”.

Foram 25 anos de sofrimento.

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Leonor relata o sofrimento que passou quando estava casada com Orlando (Kisie Ainoã)

Agressões - Com as marcas visíveis, Leonor era o tempo todo ameaçada. “Meu marido dizia; vai dar parte que já vou te mandar para onde quer ir. Ia me matar, tinha um carro e falava: olha Leonor, um dia vou deitar você no caminho e passar por cima”, lembra.

Outro relato chocante que dona Leonor conta, é da vez que o filho Carlito quase foi assassinado pelo próprio pai. Na época, com 13 anos de idade, atendeu a ordem de Orlando e lhe trouxe um cigarro, porém não era da marca que ele queria. “Estava com uma faca na mão e disse que o menino tinha pegado errado. Nisso bateu com a faca na cabeça do meu filho, depois deu um coice em seu estômago”.

Com os golpes, o menino desmaiou e a mãe entrou em desespero. “Não tinha nada em casa, então coloquei açúcar para estancar o sangue. Depois coloquei um pano na cabeça dele e com o passar dos dias, foi melhorando. Ele tem a cicatriz na cabeça até hoje”, afirma.

Separação - Tempo depois, o casal se mudou para o distrito de Quebra Coco, próximo do município de Sidrolândia- MS. Nesse período, Leonor estava grávida de Josefa, mas Orlando se importava apenas em ter uma mulher para satisfazê-lo.

“Ele levou outra mulher para morar comigo na casa, disse que era para me ajudar no momento do parto. Ela ficou um tempo lá, teve quatro filhos com meu marido até que me xingou e eu não aceitei. O Orlando construiu uma casa para ela morar com as crianças que tiveram, porém, continuou casado comigo”, relata.

Depois disso, Leonor e Orlando se mudaram para Campo Grande. “Ele deixou a outra com os quatro filhos, em seguida me abandonou com mais nove crianças. Aqui continuou atrás das mulheres, quando recebia dinheiro gastava tudo com elas, comprava brincos, rádios para as raparigas. Enquanto isso, nossos filhos e eu não tínhamos nada, tive que trabalhar duro para tentar colocar comida na mesa e mesmo assim faltava”, conta.

As idas e vindas permaneceram por um tempo, até Orlando conhecer uma prima e desaparecer por 30 anos. “Sumiu e me deixou de novo, nesse tempo já estava perto de dar à luz a outro filho”, lembra.

Bola pra frente - Após anos apanhando e vendo os filhos sofrerem maus-tratos, dona Leonor aproveitou a partida do marido para refazer a vida e criar as crianças. “Todo mundo queria meus filhos porque eu não tinha marido, mas disse que não era cachorra para dar eles aos outros. Falei que até morrer iria ficar com eles, porque são meus”, afirma.

Leonor começou a trabalhar na região da Gameleira, na Capital. “Acordava bem cedinho, chamava todos e íamos andando até a roça que tinha por lá. Pulávamos o rio e chegando no local, eu carpia, limpava e o homem para quem trabalhava, me dava algumas mandiocas. Depois do serviço, voltava para a casa e meus filhos reclamavam de fome, mas não tinha nada para comer direito”.

“Às vezes, uma vizinha me dava um pouco de comida, para alimentar as crianças. Ficava com fome, mas eles não poderiam ficar. O Orlando foi embora e não deixou nada pra gente, vendeu tudo. Na época, não tinha água encanada, então lavava roupa, tomava banho, fazia comida com água do poço. A nossa energia era um lampião”, lembra.

Três décadas depois de abandonar a esposa, Orlando retornou para Campo Grande e bateu na porta de dona Leonor, querendo abrigo. “Os meninos já estavam crescidos e mandaram ele ir embora, por tudo que fez com a gente. Nisso, ele foi morar com outra mulher até morrer aos 85 anos”, disse.

Orlando faleceu há quatro anos, no entanto, para a viúva, a sua morte foi um alívio. “O meu filho caçula, Milton veio me contar que ele tinha morrido. Fiquei aliviada porque falava que iria me matar”, afirma. “Hoje estou feliz, quero ficar o resto da minha vida em paz”, complementa.

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Foto em família, a bisneta Ana Clara à esquerda, ao lado de Milton e no centro Leonor, e o filho José de camiseta amarela ao lado da sobrinha Bianca (Foto: Kisie Ainoã)

História de amor - A conversa com a senhora continuou, e ela resolveu contar como foi que caiu nessa cilada. Orlando apareceu em sua vida e aparentava ser uma pessoa descente, apaixonada. Ele morava em Guaraci e ela na cidade de Colorado, no Paraná. Contudo, distância não era problema para o então cavalheiro, que pegava uma bicicleta e pedalava cerca de 45 quilômetros para a visitar.

“Ia casar com outro homem quando Orlando apareceu em minha vida. A avó dele me conhecia, via eu trabalhando na roça e dizia que era para casar comigo porque sou trabalhadeira. O outro que seria meu marido era maravilhoso, mas não era pra ser”, relata.

Hoje, aos 86 anos e livre de todo o sofrimento, dona Leonor só quer ver os filhos Carlito, Nadir, Valdir, Maria Eugenia, Rubis, Marlene, José, Josefa e Milton felizes. “A Vandenira, Helena e o outro José morreram porque não tinham condições. No parto, eu sofria sozinha”, disse.

Agora, ela mora com o filho José no bairro Tarumã e conta com a ajuda de Milton, que é enfermeiro. “Fico mais em casa, faço as minhas coisinhas. Estou em paz”, afirma dona Leonor com sorriso no rosto. O filho Milton faz questão de elogiar a mãe por ser guerreira. “Ela sofreu muito e hoje é nossa referência. Ela é o nosso tudo”, finaliza.